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Medicina Ayahuasca no contexto urbano


A ayahuasca é uma medicina poderosa, e assim como qualquer outra substância, existe um limite tênue entre a medicina e o veneno.


Ela trabalha no mundo onírico, áurico e físico e pode nos trazer insights, mostrando questões escondidas em nosso inconsciente. Ela nos desperta para um mundo espiritual e nos mostra claramente as limitações que o corpo gera para nosso espírito, ao nos colocar em situação de mente expandida e experiência extra corpórea. Nossa sensibilidade aumenta e percebemos coisas no ambiente que não conseguimos perceber em estado normal.


Toda situação é feita de polaridades, tendo lado de luz e de sombra, positivo e negativo, então deixo claro que não venho aqui desvalidar a medicina, e também não venho dizer que ela pode resolver todos seus problemas, muito menos o de todas as pessoas.


Pelo lado positivo, presenciamos o resgate da cultura indígena amazônica, indígenas vivendo de novo sua tradição após restrições geradas pelos tempos de opressão quando eram escravizados pelo homem branco, impossibilitados de praticar sua cultura, ou mesmo falar sua língua. Também vemos a (re)conexão com suas raízes e tradições, seus rituais e festas tradicionais, união da comunidade dentro das aldeias em torno de um significador cultural e tradicional, disseminação global de uma medicina natural com benefícios comprovados por estudos científicos. Casos complexos de depressão sendo resolvidos com medicina natural, diminuido o uso de alopáticos químicos, substâncias que fortalecem a medicina ocidental e prendem o espírito.

Por outro lado, o uso indevido da medicina pode gerar muita confusão mental e ilusões. Além dos danos pessoais, também há a banalização da tradição sagrada dos povos indígenas.


Agora vamos pensar juntos, o que é o uso indevido da medicina?


Sendo uma pessoa tradicionalista, acredito no poder dos ancestrais, e da maneira ancestral de utilizar a medicina. Porém, como estudioso e pesquisador, também entendo que todo ritual é fluido, e passa por transformações ao longo do tempo. Sua imparmanência é de sua natureza. Hoje os indígenas têm contato com recursos que antes não tinham, como violão e outros instrumentos musicais, o que mudou muito a mecânica do ritual.

Aqueles que antes eram silenciosos, feito apenas com cantos na voz, no escuro, entre poucas pessoas mais velhas da aldeia, hoje se tornou uma festa, uma noite de união, com dança, violão, tambores, chocalhos, alegria e muita cantoria.


A música adaptada para violão torna a medicina mais acessível para pessoas que nunca tiveram contato com conhecimentos espirituais, e que estão menos dispostas a enfrentarem suas sombras cara a cara, já que as cantorias, o clima festivo e de união que o ritual atual traz, é mais amigável que a maneira tradicional. Porém acredito que deve haver mais discussões e conscientização sobre o uso da ayahuasca, para que menos pessoas fiquem encantadas no mundo da jibóia, vivendo o mundo de ilusões sem colocar os conhecimentos em prática. O uso tradicional da bebida deve ser estudado, para entendermos o seu funcionamento no contexto atual.


O contato com o violão e a adaptação dos rezos ancestrais em novas melodias e ritmos, cantados em grupos musicais, incentivou os jovens indígenas a buscarem mais sobre a própria tradição. Muitos estavam perdidos no alcool, desinteressados quanto aos mais velhos e suas histórias. A tradição é oral, e está viva dentro dos mais velhos já que não havia escrita entre os povos indígenas.


Esse contato é muito positivo, pois mantém a tradição viva, o que só pode ser feito se o jovem escuta do mais velho que carrega conhecimentos passados ao longo das gerações. Os pajés, caciques, mais velhos em geral nas aldeias, são verdadeiras bibliotecas vivas, e merecem ter seu conhecimento passado para frente, para mais pessoas se beneficiarem e perpetuarmos esses ensinamentos.


O uso tradicional da bebida era muito diferente. Participei de aulas com o professor Ibã Sales, da etnia Huni Kuin, responsável pelo resgate das cantorias tradicionais e histórias antigas da tradição. Hoje é lider do Movimentos dos Artistas Huni Kuin MAKHU, que estudam as cantorias ancestrais e fazem um trabalho de resgate e divulgação da cultura. Ele resgatou e mantém vivo até hoje as cantorias e formas tradicionais da festa do seu povo e o canto tradicional do nixi pae, a ayahuasca.

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Percorrendo diversas aldeias e falando com os mais velhos, usou da tecnologia para gravar os cantos antigos e transcrevê-los em livros, registrando e mantendo viva essa tradição. Não só publicou os Livros "Espirito da Floresta" e "Huni Meka - os cantos do cipó" com as cantorias tradicionais, como também distribuiu entre as aldeias Huni Kui para que os jovens estudassem a tradição.


Link para o livro clique aqui para conhecer o Huni Meka e aqui para conhecer mais sobre MAHKU no artigo "por que canta o Huni Kuin?"


Como já apontei, esse resgate foi essencial para reviver a tradição entre os mais jovens. Hoje existem festivais na floresta amazônica que atraem pessoas de todos os cantos do planeta, colocando o mundo em contato com essas tradições antigas e gerando recursos para melhoria de vida nas aldeias através do etno turismo.


Porém, a facilidade de acesso às medicinas também traz consequências negativas. O uso tradicional da bebida foi distorcido, ou pelo menos, reformulado, e hoje a medicina tem livre acesso para (praticamente) qualquer um que queira adquirí-la. Além disso, muitas pessoas do movimento das medicinas utilizam a bebida de forma não tradicional, fora do contexto indígena/religioso o que pode confundir os usuários da bebida.


A ayahuasca traz muitos beneficios, e se você quer saber mais sobre ela, há muitos artigos. Surgiro projeto de mestrado do Guilherme Meneses. Acesse no link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-13102020-172826/publico/2020_GuilhermePinhoMeneses_VCorr.pdf


Os perigos da ayahuasca. Claro que há artigos criticando, mas normalmente com um viés conservador, e aqui, venho falar por experiência própria, ja tendo participado de rituais e estudado as medicinas tanto com indígenas como com brancos que se aprofundaram nesse conhecimento.


Pela minha percepção da fala do professor Ibã Sales, o objetivo tradicional de consagrar a bebida é conseguir informações dos espíritos aliados de como prosseguir na vida, ajudando nas decisões que irão guiar os passos da comunidade. As viagens oníricas que acontecem sob efeito do cipó, trazem insights. Os insights, segundo ele, são "segredinhos" que o espírito da ayahuasca traz para nós, e devemos refletir sobre ele, meditar, o grande desafio é entender a mensagem desse segredinho e colocá-lo em prática em nosso dia-a-dia.


Muitas pessoas viciam em expansão de consciência, e aqui não me refiro a vícios fisiológicos como o da nicotina ou do álcool, mas vícios psicológicos, colocando a responsabilidade no espírito da floresta sobre as decisões da vida, usando a medicina como uma muleta. A pessoa fica dependente daquelas experiências, não só em relação aos efeitos da bebida, mas também à sensação de pertencimento a um grupo. E acredita que apenas através do estado alterado de consciência é que poderá encontrar as respostas sobre a vida, sobre como prosseguir ou tomar decisões. O indivíduo se torna um buscador... mas o buscador que não coloca em prática seus aprendizados, se perde na busca.


Os cantos tradicionais revivem os mitos, falam da jibóia, o espirito da ayahuasca, falam dos animais, das plantas, das flores, e de maneira metafórica, contam histórias antigas passadas oralmente. Cada um desses cantos têm sonoridades diferentes de acordo com o momento do ritual.


Segundo Ibã, e também constatado por experiência própria, o espírito da ayahuasca é muito sensível, e não gosta de muito barulho. Assim como qualquer cobra, ela serpenteia nossa mente de maneira silenciosa e nos traz segredos, são falas pontuais e simbólicas, que irão se desdobrar em muitos significados quando voltamos do astral e meditamos sobre elas. Os ensinamentosda jibóia acontece com muita concentração e atenção aos detalhes.


É muito fácil confundir a voz do espírito da floresta com o nosso próprio ego, ou ainda com espíritos zombeteiros que possam se aproximar quando o ritual não é bem amparado por companheiros espirituais preparados para receberem essa energia. Há grande possibilidade de entrarmos em um jogo egóico, acreditando que estamos sendo guiados por uma força espiritual quando, na verdade, estamos servindo às vontades de nosso ego. E pra mim, é ai que mora o grande perigo: o encantamento.

Em uma das canções do Huni Meka, Yube Nawa Aibu, fala-se da mulher jibóia, uma personagem do mito da criação da ayahuasca que encanta Yube Inu e o leva para o fundo do lago, que na simbologia representa o mundo espiritual. Lá ele vive por muito anos, encantado sem perceber que na verdade, essa mulher era uma jibóia. Toda sabedoria que seu pai Exa Inká guarda, é algo muito sagrado que não deve ser espalhado no mundo físico. Yube Inu toma consciência de que estava encantado e foge do mundo do lago trazendo os segredos da jibóia para seus familiares no mundo real. Ele ensina sobre a preparação do chá para seus parentes e depois de morto, aparece nas mirações para ensinar seus parentes a cantoria do cipó, hoje conhecido como Huni Meka.


Voltando para a canção; ela fala dessa força da floresta que vêm chegando, fazendo barulho, balançando as árvores, muitas vozes chamando, e essa mulher jibóia em cima de um toco, te olhando. Duas frases, pra mim, são muito importantes: "xina metsi sipatã" traduzido livremente como "ficar firme o pensamento" e "pae yuã shutani" você que está controlando . Interpreto isso como uma firmeza de não se deixar ser encantado pela jibóia, não se deixar ser levado pelas belezas e pelos encantos magnificos das visões que a bebida nos traz, pois podemos ficar iluidos e presos no mundo espiritual, como Yube Inu ficou.


Isso tudo deve ser interpretado de maneira simbólica, assim como qualquer tipo de conhecimento. A ilusão que o ego nos gera, nos faz querer permanecer no mundo mágico da jibóia encantada, porém esquecemos que a parte mais importante do mito, é que Yube Inu escapa do encatamento e traz informaçoes significantes para o mundo físico.


Acredito que a parte mais difícil do uso da ayahuasca, é conseguir essa firmeza no pensamento, é ter consciência de que a viagem que acontece durante os efeitos da bebida é mágica e passageira, ela não deve ser permanente. Se estamos encarnados, é porque temos o desafio de viver na matéria, não devemos fugir para o astral. As informações devem ser coletadas nesse mundo e trazidas para nossa vida, aplicando-as no dia-a-dia para nos beneficiar.


Sou muito grato às medicinas da floresta e à todos envolvidos: aqueles que já me serviram, que prepararam, àqueles que estudam e criam artigos acadêmicos, aos povos tradicionais que mantém viva essa tradição e ao próprio espírito da floresta, que me acompanha em todo momento, consagrando ou não a medicina. Agradeço a todos que vieram antes de mim proporcionando aprendizados que me trouxessem até aqui.

 
 
 

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